TEMAS GERAIS

As cartas deixadas por adolescentes que morreram pelo EI em Mossul.

Jovens deixaram famílias para cometer ataques suicidas.

Em 02/03/2017 Referência CORREIO CAPIXABA - Redação Multimídia

“Minha querida família, por favor me perdoe”, diz uma carta escrita à mão jogada em um corredor empoeirado de um centro de treinamento no leste de Mossul.

“Não fiquem tristes e não usem as roupas pretas (do luto). Eu pedi para me casar e vocês não me casaram. Então, por Deus, eu irei me casar com 72 virgens no paraíso”.

Essas foram as palavras de despedida do estudante Alaa Abd al-Akeedi antes de ele deixar o centro para encerrar sua vida em um ataque a bomba contra forças de segurança iraquianas no ano passado.

A carta foi escrita em um formulário da “Brigada de Mártires do Departamento de Soldados” do Estado Islâmico e colocada em um envelope endereçado à casa de seus pais no oeste de Mossul

Akeedi, que tinha entre 15 e 16 anos quando se alistou, era um entre as dezenas de jovens recrutas que passaram pelo centro de treinamento nos últimos dois anos e meio para se prepararem para atuar na jihad. Em vários casos eles participaram de ataques suicidas.

A carta dele nunca chegou à sua família. Ela foi deixada para trás junto com vários outros bilhetes de outros recrutas para seus parentes quando o Estado Islâmico abandonou o local durante uma ofensiva do exército que retomou mais da metade da cidade desde outubro.

Os militantes também deixaram registros manuscritos contendo detalhes pessoais de cerca de 50 recrutas. Nem todos têm datas de nascimento, e apenas alguns tinham fotografias anexadas, mas muitos deles eram adolescentes ou tinham pouco mais de 20 anos.

Esses documentos, encontrados pela Reuters em uma viagem pelo leste de Mossul depois que o exército retomou essa região, inclui alguns dos primeiros relatos a serem tornados públicos e oferecem uma visão da mentalidade de jovens recrutas preparados para morrer pela ideologia linha dura do Estado Islâmico.

A Reuters entrevistou parentes de três dos combatentes, incluindo Akeedi, para ajudar a determinar de onde eles vieram e porque escolheram a jihad. Em raros testemunhos das famílias de suicidas do Estado Islâmico, eles falaram de adolescentes que se uniram aos jihadistas para sua consternação e perplexidade, e que morreram em meses.

A Reuters não conseguiu verificar de forma independente as informações sobre outros recrutas no registro. O Estado Islâmico não está disponível para veículos de mídia, então não pode ser contatado para comentar as cartas, os registros ou o fenômeno dos jovens suicidas.

‘Irmão jihadi, respeite o silêncio’

O Estado Islâmico atraiu centenas de jovens recrutas em Mossul – de longe a maior cidade no califado que declarou em 2014 sob o território que conquistou no Iraque e na Síria. O grupo executou centenas de ataques suicidas no Oriente Médio e planejou ou inspirou dezenas de ataques no Ocidente.

O centro de treinamento visitado pela Reuters consistia em três casas confiscadas de moradores de Mossul. Buracos do tamanho de homens abertos em muros permitiam fácil acesso entre elas.

Os andares mais baixos estavam lotados de pôsteres e panfletos com tópicos de religião a armas, além de testes sobre vida militar e Corão. Tinta verde e lençóis nas janelas tampavam a visão do lado de fora a davam às salas um aspecto misterioso.

Casacos militares e alvos em formas de corpo humano lotavam uma sala, enquanto medicamentos e seringas estavam espalhados em outra, que parecia ter servido como uma clínica.

As salas de cima estavam cheias de beliches, com espaço para quase 100 pessoas. Sinais impressos anunciavam regras rigorosas. Uma determinava: “Irmão jihadi, respeite o silêncio e a limpeza”.

Jurando fidelidade

A maioria dos recrutas listados no registro era iraquiana, mas havia alguns dos Estados Unidos, Irã, Marrocos e India. O registro de Akeedi diz que ele jurou fidelidade em 1º de dezembro de 2014, poucos meses depois de os jihadistas capturarem Mossul.

Um parente disse à Reuters por telefone que o pai de Akeedi ficou profundamente abalado pela decisão do filho, mas temia ser punido caso tentasse removê-lo das fileiras do Estado Islâmico. A Reuters não conseguiu contatar o pai do jovem.

Akeedi raramente visitava sua família depois de se unir aos jihadistas. Em sua última visita ele disse ao pai que iria cometer um ataque suicida em Baiji, uma cidade com uma refinaria de petróleo ao sul de Mossul, onde os militantes estavam combatendo repetidas ofensivas do exército iraquiano.

“Ele disse ao pai, ‘vou buscar o martírio’”, disse o parente, que não quis se identificar porque teme represálias do Estado Islâmico ou de forças iraquianas que se preparavam para invadir a área.

Alguns meses depois, a família de Akeedi foi informada que ele foi bem-sucedido no ataque.

Outro recruta da mesma idade, Atheer Ali, é listado em um registro ao lado de uma foto do tamanho das usadas em um passaporte, mostrando um menino com sobrancelhas grossas e grandes olhos castanhos.

O pai dele, Abu Amir, disse à Reuters que o filho era um excelente aluno, que se destacava em ciências e que sempre assistia ao canal National Geographic. Ele adorava nadar e pescar em um rio próximo e ajudava o tio a plantar legumes após a escola.

Jovem demais para ter uma barba

Ali era tímido e magro, não tinha a mentalidade ou o físico de um lutador, disse Abu Amir em uma entrevista em sua casa no leste de Mossul, remexendo em fotos de família.

Então o pai ficou horrorizado um dia quando, no início de 2015, Ali não veio para casa depois da escola, mas fugiu com sete colegas de classe para se unir ao Estado Islâmico.

Quando Abu Amir foi aos escritórios dos militantes do outro lado da cidade para procurar seu filho, eles ameaçaram prendê-lo.

Ele nunca mais viu seu filho vivo.

Alguns meses depois, três combatentes do Estado Islâmico desceram de uma caminhonete na porta de sua casa e entregaram a ele um pedaço de papel com o nome do menino escrito. Ele estava morto.

Abu Amir recuperou o corpo do necrotério. Seu cabelo tinha crescido, mas ele ainda era jovem demais para ter uma barba. Estilhaços estavam alojados em seus braços e no peito.

Ele disse que os combatentes contaram a ele que o menino foi atingido por um ataque aéreo em uma posição em Bashiga, ao noroeste de Mossul. Eles o descreveram como um “herói”.

Reunidos na sala de estar da família, parentes de Ali dizem que ele sofreu uma lavagem cerebral. Muitos de seus colegas de escola fugiram de Mossul quando os militantes assumiram o controle e Ali passou a andar com um novo grupo, mas sua família nunca notou uma mudança em seu comportamento.

“Ainda agora eu estou assombrado. Não sei como eles o convenceram a aderir”, disse Abu Amir. “Fico apenas contente que pudemos enterrá-lo e encerrar tudo isso”.

‘Sua mente era frágil’

Sheet Omar também tinha 15 ou 16 anos quando se uniu ao Estado Islâmico em agosto de 2014, semanas depois de o grupo capturar Mossul. Perto da entrada de seu registro está o adendo fatal: “Conduziu operação de martírio”.

Shalal Younis, sogro da irmã de Omar, confirmou que ele morreu executando um ataque suicida, embora não tenha certeza dos detalhes.

Ele disse que o adolescente, do distrito de Intisar, estava acima do peso e era inseguro, e se uniu aos jihadistas após a morte de seu pai.

“Sua mente era frágil e eles tiraram vantagem disso, prometendo a ele virgens e falando a ele sobre ser um bom muçulmano”, disse Younis. “Se alguém o tivesse tentado com drogas e álcool, ele provavelmente teria sucumbido a isso”.