NEGÓCIOS

Assim, a Multilaser se tornou uma empresa de 3 mil produtos

Renato Feder, copresidente da Multilaser, em um dos showrooms na sede da empresa, em SP.

Em 30/03/2018 Referência CORREIO CAPIXABA - Redação Multimídia

Com apenas seis anos de idade, Renato Feder estava apreensivo naquele primeiro dia de aula no Colégio Horizontes, localizado no bairro paulistano de Cerqueira César. O ano era 1985. Criado em Mogi das Cruzes, em São Paulo, o menino acabara de se mudar para a capital paulista. Preocupada com a adaptação, sua mãe decidiu ficar na escola durante toda aquela manhã. Não foi preciso. Em quinze minutos, o garoto fez um amigo: Alexandre Ostrowiecki. Era o começo de uma grande amizade, que se fortaleceu ao longo dos anos.

Os dois sempre estudaram juntos até a faculdade, quando cursaram administração na Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Depois de formados, em 2000, cada um seguiu sua carreira. Feder, na construtora Promon e na companhia de informações de crédito Serasa. Ostrowiecki passou pela empresa de bens de consumo anglo-holandesa Unilever e na consultoria americana Accenture antes de começar a trabalhar na Multilaser, uma pequena empresa de reciclagem de cartuchos para impressoras fundada por seu pai, Israel, em 2001.

Infelizmente, quis o destino que uma tragédia voltasse a uni-los. Desta vez, profissionalmente. Em maio de 2003, o patriarca da família Ostrowiecki desapareceu quando praticava mergulho na Costa Rica. Depois de dez dias, as equipes encerraram a busca pelo corpo. Além do baque pela perda, Alexandre, então com 23 anos, teve de encarar o desafio de comandar a Multilaser. Foi quando ele decidiu chamar Feder para ser seu sócio que, apesar de ser herdeiro do grupo Elgin, uma tradicional fabricante brasileira de eletrodomésticos, não tinha recursos para participar do negócio. Mas Alexandre Ostrowiecki fez uma proposta ousada: não seria necessário desembolsar, de início, nenhum centavo por metade da operação.

Falar sobre dinheiro

Eles só voltariam a falar sobre dinheiro no prazo de um ano. “Se ele estivesse feliz, me pagaria. Do contrário, poderia ir embora, sem me dever nada”, diz Alexandre. “Eu não sabia se a empresa iria sobreviver. Selamos tudo com um aperto de mão.” Feder complementa: “Eu tinha a perspectiva de trabalhar com a minha família. Mas o que me atraiu foi a chance de construir meu próprio negócio”, afirma o herdeiro do Elgin, hoje mais conhecido por seus méritos na Multilaser. “No fundo, éramos dois moleques de vinte e poucos anos tentando fazer a empresa acontecer.”

O acordo no “fio do bigode” foi pago um ano depois e só reforçou os laços de confiança entre os dois amigos de infância. A partir dali, eles assumiram a Multilaser como copresidentes da operação. A dobradinha, que já era bem-sucedida na vida pessoal, mostrou-se afinada também nos negócios. De um faturamento de R$ 32 milhões, em 2002, a Multilaser engatou uma trajetória de crescimento que fez a receita líquida chegar a R$ 1,75 bilhão, no ano passado. Em receita bruta, o valor ultrapassou os R$ 2 bilhões. Mas como uma empresa que vendia cartuchos para impressoras se transformou numa companhia com um extenso portfólio, que hoje alcança três mil produtos? Essa estratégia começou a ser desenhada em 2004. “HP, Epson e Lexmark dominavam o mercado de cartuchos originais e tudo o que eles queriam era nos sufocar”, diz Feder “Nós sabíamos que, mais cedo ou mais tarde, nosso negócio ia acabar.”

Os primeiros passos rumo à diversificação incluíram acessórios, como mouses e teclados. Em seguida, itens como tocadores de MP3 e câmeras digitais. Hoje, a empresa vende, literalmente, de tudo. De computadores e celulares a babás eletrônicas e churrasqueiras elétricas. De skates e câmeras de segurança a drones e brinquedos em geral. Por esse motivo, é difícil saber quem são os concorrentes da Multilaser. Quem vende de tudo, tem quase todos os concorrentes do mundo. No caso de smartphones, por exemplo, a Alcatel, que pertence à chinesa TCL, e a brasileira Positivo são suas rivais. A princípio, uma oferta tão ampla pode esconder riscos cruciais. “Mas, ao contrário das economias maduras, em um mercado muito volátil e imprevisível, como o brasileiro, essa é uma boa estratégia de sobrevivência”, diz Walter Franco Lopes, professor de economia do Ibmec/SP. “A empresa tem várias frentes para compensar eventuais quedas em determinadas categorias.”

Um ponto une esse leque variado de ofertas: a busca por preços que caibam no bolso do maior número possível de consumidores, especialmente aqueles das classes C e D. No geral, as cifras não ultrapassam 20% dos valores de entrada praticados pelo mercado em cada categoria que a Multilaser atua. “Se milhões de brasileiros não puderem comprar o que vamos oferecer, estamos fora”, diz Ostrowiecki. “Podemos dar alguns tiros acima, mas nunca entraremos em um segmento premium ou no mercado de luxo.” Um dos poucos exemplos que destoa da abordagem tradicional de produtos da Multilaser é a Pulse. Mais voltada à classe B, a marca traz fones de ouvido e caixas de som com preços que podem chegar a R$ 599. “Com um portfólio tão extenso, segmentar as ofertas por marcas funciona mais do que trabalhar com apenas uma bandeira”, afirma Roberto Nascimento, professor da ESPM. Atualmente, a Multilaser distribui seus produtos por meio de sete marcas. (leia quadro “Os tentáculos
da empresa”)

Estratégia comercial à parte, a fórmula da transformação da Multilaser tem como ponto de partida os perfis complementares dos dois sócios. E o equilíbrio obtido dessa equação. Enquanto a definição dos rumos é compartilhada, as demais funções são bem divididas. Mais reservado e cauteloso, Ostrowiecki dedica-se, prioritariamente, a processos internos, como compras, logística, produção e tecnologia. Já Feder, extrovertido e mais propenso a dar passos arrojados, cuida de toda a área comercial e das finanças. Ele é a referência da empresa para o mercado. “Se eu estivesse sozinho, a Multilaser, provavelmente, ainda seria pequena”, afirma Ostrowiecki. “Mas se o Renato fosse o único no comando, talvez ela tivesse quebrado no primeiro ano”, diz, bem humorado, o empresário.

Vivendo e aprendendo

Sob esse desenho, Ostrowiecki foi o responsável por consolidar a importação de componentes e produtos acabados da China. Conhecido por concentrar boa parte da cadeia de fabricação mundial do setor de tecnologia – de itens sem marca até produtos como o iPhone, da Apple –, o país asiático ajuda a explicar como a Multilaser conseguiu colocar de pé uma oferta ampla de produtos, a um custo mais acessível. “Decidimos investir no país porque todo o mercado de tecnologia está ancorado no ecossistema chinês de produção”, diz Ostrowiecki. Hoje, a empresa figura, seguramente, na lista dos maiores importadores daquele mercado, com uma média mensal de trezentos contêineres. Com exceção de tablets, celulares, notebooks, memórias e câmeras de segurança, que são montados nas fábricas da companhia em Extrema (MG) e em Manaus (AM), o restante dos produtos vem diretamente de fornecedores do país da Grande Muralha.

Para desenvolver o relacionamento com os chineses, Ostrowiecki aprendeu a falar mandarim. Isso não impediu que ele colecionasse alguns percalços no país. Certa vez, um parceiro local “sequestrou” uma carga da Multilaser, já quitada, no valor de US$ 300 mil. A medida era uma retaliação por um calote de US$ 100 mil que o fornecedor em questão havia levado de outra empresa brasileira, que nada tinha a ver com a Multilaser. Como resgate, ele exigia US$ 30 mil. Refém da situação, Ostrowiecki decidiu pagar a quantia. No entanto, o agente pediu mais US$ 70 mil. Depois de muita discussão, o empresário e o parceiro acabaram em um galpão na periferia de Hong Kong. A cada caminhão liberado, o intermediário recebia um “cheque” do brasileiro.

Esse e outros casos trouxeram uma série de lições. A qualidade dos produtos foi um dos aprendizados. “Nós reconhecemos que batemos cabeça e erramos nesse ponto”, afirma Feder. Para consertar esses erros, a empresa passou a adotar uma série de medidas. Hoje, para garantir a qualidade do que importa e a seriedade dos parceiros, a Multilaser mantém um laboratório em Shenzhen, na província de Guangdong, para testar e homologar produtos. E possui um profissional alocado nas fábricas de cada um dos 15 maiores fornecedores da empresa no país. Esse time inspeciona desde a chegada de matérias-primas e a linha de fabricação até o produto acabado. No total, a estrutura da companhia na China conta com um time de 60 engenheiros.

Mas não foi apenas em solo chinês que a Multilaser enfrentou contratempos e prejuízos. Em 2007, a empresa inaugurou sua fábrica na cidade mineira de Extrema. Logo na primeira semana, o estoque foi roubado, provocando um prejuízo de cerca de R$ 5 milhões. A solução foi aumentar a vigilância e a segurança da área. Hoje, 60% do faturamento passa pela unidade, que opera em três turnos e receberá um investimento de R$ 100 milhões nesse ano. O aporte inclui a produção de novos itens, como ventiladores, batedeiras e liquidificadores. O dinheiro será usado também para uma ampliação dos atuais 30 mil metros quadrados para 54 mil metros quadrados. A primeira fase das obras já está em andamento.

A autonomia dada aos funcionários

A autonomia dada aos funcionários é outro traço na cultura da Multilaser. Ostrowiecki e Feder não possuem salas próprias e dividem as mesmas baias com o time instalado na sede da empresa, na avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo. Os executivos têm liberdade para “caçar” novidades para o portfólio da companhia. A abordagem permite que a Multilaser lance, em média, 500 produtos por ano. “Cerca de 20% do nosso faturamento vêm de lançamentos, diz Feder. Ele também ressalta que a renovação e a diversidade do portfólio ajudam a blindar a operação das crises e oscilações do mercado.

“O grande mérito da Multilaser é saber ler as tendências de diferentes segmentos e, rapidamente, incorporar esses produtos ao seu portfólio, especialmente em um mercado tão dinâmico, como o de tecnologia”, afirma Marcus Quintella, coordenador do MBA de empreendedorismo da FGV. Ele ressalta que o tamanho do portfólio e as estratégias da Multilaser aproximam a companhia muito mais do perfil de uma varejista. E essa abordagem esconde alguns riscos para o negócio. “A Multilaser é uma fabricante em termos, pois tem dezenas de subfabricantes sob o seu guarda-chuva. O risco que ela corre é estar na mão de muita gente para garantir preço, qualidade e logística de entrega.”

O varejo é a última coluna na estratégia da Multilaser, mas não é a menos importante. Das dificuldades iniciais para vencer a resistência a uma marca desconhecida, hoje, a empresa está presente em mais de 40 mil pontos de venda no País, o que inclui desde pequenas lojas de informática até grandes redes com atuação nacional. “Nenhuma empresa no Brasil tem a capacidade de distribuição e alcance que eles têm“, diz uma fonte do setor. Feder destaca outro ponto: “Temos uma posição confortável, pois somos muito pulverizados. Nenhum parceiro, sozinho, tem alta representatividade no nosso faturamento”.

Varejistas parceiras

Com nove lojas no Rio Grande do Norte e um mix de cerca de 500 produtos da Multilaser, a Miranda Computação é uma das varejistas parceiras. “Qualquer problema que temos, nós falamos diretamente com o Alexandre ou o Renato, pelo WhatsApp. É bem diferente do longo caminho para ser atendido por uma multinacional”, diz Paulo Miranda, proprietário da rede. Outro tradicional varejista concorda. “Começamos com uma operação bem pequena, mas a Multilaser já está entre os nossos sete maiores faturamentos”, afirma Raul Kalunga, diretor de compras da Kalunga, que possui 178 lojas no País. “Eles são malucos, pois estão lançando produtos o tempo inteiro. E construíram um relacionamento tão bom que praticamente ficamos com tudo o que nos apresentam.”

Em linha com o crescimento registrado nos últimos anos, a Multilaser projeta superar, em 2018, a casa de R$ 2 bilhões em receita líquida. Com essa musculatura, a oferta pública inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) pode ser a próxima fronteira da companhia. Questionado, Feder não quis comentar o tema. Mas, conforme apurou a DINHEIRO, a empresa contratou os bancos Credit Suisse, Safra, Citi, BTG Pactual, Itaú BBA e J.P. Morgan para assessorá-la na empreitada. A princípio, o IPO na B3 acontecerá no segundo semestre deste ano. Resta saber se o mercado de capitais também comprará a fórmula da dupla Ostrowiecki e Feder.

Imagem: Moacir Drska/Istoé Dinheiro