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Brasileiros contam por que preferem viver na Venezuela

Um publicitário, uma autônoma e uma dona de casa falam sobre como a situação no país.

Em 17/08/2017 Referência CORREIO CAPIXABA - Redação Multimídia

Uma máscara de gás na mesa de trabalho, compras nos Estados Unidos, estoques de mantimentos. Essas são algumas das estratégias que brasileiros entrevistados pelo G1 adotaram para driblar os problemas que enfrentam morando na conturbada Venezuela. Um publicitário, uma autônoma e uma dona de casa falam sobre como a situação no país piorou nos últimos meses, em que a crise política e econômica se agravou consideravelmente.

O publicitário Bobby Coimbra, que chegou há 28 anos no país, diz que nos últimos meses sua rotina sofreu o impacto das frequentes manifestações em Caracas, que passam bem perto do prédio em que trabalha, e pelo encerramento de operações de companhias aéreas. Coimbra é presidente na Venezuela de uma companhia britânica que atua em vários países da América Latina.

Na agência, os protestos mudaram a rotina dos funcionários. Como o prédio fica na rota das manifestações diárias, o expediente passou a começar mais cedo, às 8h, e terminar às 14h, sem horário de almoço -- em tempo para que os funcionários deixem o escritório.

Ele conta que em dias de confronto muito intenso a fumaça e o cheiro de gás lacrimogêneo podem ser sentidos da agência. “Nós estamos no primeiro andar, em uma área comercial nova, e temos uma vista privilegiada para ver os protestos. Às vezes, o cheiro de gás lacrimogêneo sobe. É por isso que eu tenho a máscara”. Porém, no cotidiano, ele diz fazer um esforço para manter a empresa fora da atmosfera polarizada que caracteriza o momento atual da política venezuelana.

“Temos um escritório moderno, aberto, com mesa de ping pong. A sexta é uma bagunça, que eu vejo como positiva, pode levar os cachorros, filhos. Quando é possível, fazemos a exibição de filmes, tem pipoca”, afirma.

Mas o esforço vai mais além. O executivo se defronta com o constante desafio de reter talentos na empresa em meio a uma inflação galopante. “Nenhuma empresa tem capacidade de repassar a inflação nos salários. O que eu e outros empresários temos feito é conceder bônus para aqueles que tenham melhor desempenho, em uma tentativa de manter essa mão de obra motivada.”

Viagens mais longas

Coimbra diz que no passado partiam de Caracas 11 voos diários para Miami, nos Estados Unidos. “Atualmente, são apenas dois voos. Tem companhias aéreas que não voam mais para cá, nos restam algumas companhias do Caribe e as locais, que padecem de falta de peças para aeronaves. Viajar está se tornando um drama. A situação é caótica”, conta.

Na última viagem que fez para Lima, no Peru, na quinta-feira, levou 12 horas para fazer um trajeto que se pode fazer em 4. “Saí de Caracas, passei por Curaçao, Panamá e, enfim, Lima. Demorou 12 horas, mas na volta é melhor, são 11 horas”, conta.

Como viaja muito, amigos e funcionários sempre pedem a sua ajuda para levar produtos que são difíceis de encontrar na Venezuela. “Sempre trago medicamentos. Vejo que a situação uniu os venezuelanos, despertou um sentimento de solidariedade, as pessoas passaram a cooperar mais entre si”, afirma.

"Vejo que a situação uniu os venezuelanos, despertou um sentimento de solidariedade, as pessoas passaram a cooperar mais entre si”
Bobby Coimbra

Ele conta que a dificuldade em encontrar medicamentos impacta mesmo aqueles que têm mais dinheiro. “Por causa da crise, os laboratórios mais importantes do país diminuíram a participação no país. Mesmo quem tem dinheiro, está tendo dificuldade para ter acesso a remédios”, observa. Para ele, a oferta de alimentos melhorou com a entrada de produtos importados, o problema é o preço alto.

Lado positivo

Coimbra diz que quando chegou na Venezuela encontrou uma economia pujante. Hoje ele observa a saída de empresas do país, mas diz que não cogita fazer o mesmo e vê até um lado positivo para o mercado.

“A Venezuela era um polo de atração para as multinacionais. O país era mais organizado, o benefício de ter uma reserva petroleira era melhor utilizado. Toda essa riqueza vem se deteriorando por ausência de diálogo entre as partes, mas, sem dúvida, continua sendo um país muito rico”, afirma.

"Só saio daqui se tornarem a publicidade ilegal"
Bobby Coimbra, publicitário

“Tenho um carinho por esse país. Só saio daqui se tornarem a publicidade ilegal”, brinca. “O venezuelano é o consumidor ideal: consumista, que compra por status, que está bloqueado por uma circunstância que está vivendo, porque está sem dinheiro. Quando a crise passar, ele vai voltar a consumir”.

Para o publicitário, a estrutura produtiva do país passa por mudanças. “Essa crise está fazendo mudar o perfil do econômico venezuelano. A saída de muitas multinacionais, na minha maneira de pensar, está abrindo a possibilidade de surgimento de empresas locais. A crise ensina que é preciso ser competitivo. Isso me leva a crer que no futuro, quando a situação voltar ao normal, o mercado venezuelano vai surgir com um perfil um pouco diferente”, afirmou.

Uma das iniciativas bem-sucedidas de sua agência foi reunir um grupo de estudantes de comunicação para atender às companhias emergentes.

“De um lado, temos um grupo de empresas que, por estarem começando, não podem pagar muito, como clínicas veterinárias, uma start-up que fabrica pipocas. De outro, criamos um celeiro para descobrir os futuros ‘Neymar’ da publicidade. Aqueles que aprendem a se virar, vão resistir a essa crise e vão tirar proveito de uma Venezuela positiva, melhor, que deve ser fruto de um diálogo.”

"Aqueles que aprendem a se virar, vão resistir a essa crise e vão tirar proveito de uma Venezuela positiva, melhor, que deve ser fruto de um diálogo"
Bobby Coimbra

Cuidado nas redes sociais

Há mais de 20 anos na Venezuela, a brasileira Mariana*, autônoma de 38 anos, considera que o país vive uma ditadura nesta administração de Nicolás Maduro. Ela não se sente à vontade para dar entrevistas -- por medo de retaliação, pediu para não ter seu nome divulgado; Mariana é um nome fictício -- e toma muito cuidado com o que posta nas redes sociais e o que mantém em seu celular.

A moradora de Valencia, no norte da Venezuela, diz que tem apagado mensagens no celular para evitar complicações com os serviços de segurança. “Não fui abordada na rua, mas tenho várias pessoas no meu entorno que já foram. Todos os dias tem que apagar tudo do celular: foto, conversas no WhatsApp, porque nas batidas policiais eles revistam carro, celular”, diz.

Ela conta que trabalha com venda de produtos importados e se nega a dar detalhes sobre o negócio da família, o que permitiria, segundo ela, ser identificada.

Mariana diz que a situação no país mudou muito desde que ela chegou e percebe uma piora desde a morte de Hugo Chávez, em 2013. “A situação, que já não era boa, tem piorado bastante. Aqui não havia mendicância. Muitas pessoas buscam o que comer nos lixos, tem muitos indigentes. Tem gente passando fome mesmo.”

Ela observa que a inflação, que supera 800% ao ano, prejudica principalmente a população de baixa renda e diz que o salário mínimo, que subiu recentemente para 97 mil bolívares, mesmo acrescido de um vale refeição de 150 mil bolívares, não é suficiente para que as pessoas consigam manter seu nível de consumo.

“Quem tem dinheiro, como a minha família, não tem problema porque pode pagar caro, mas as pessoas que não têm condições, que são a maioria, estão passando muita dificuldade.” A solução para a população de baixa renda é recorrer aos produtos com preço reduzido. Para ter acesso a esses eles, o consumidor precisa, além de enfrentar as longas filas, respeitar um cronograma de vendas estabelecido de acordo com o final do número do documento de identidade.

“Na segunda, podem comprar pessoas com RG que termina em 0 ou 1, na terça, 2 e 3 e assim vai. E você ainda tem que ter a sorte de ter o produto no dia em que você pode comprar, porque você corre o risco de esperar horas na fila e não ter”, explica.

"Na segunda, podem comprar pessoas com RG que termina em 0 ou 1, na terça, 2 e 3 e assim vai. E você ainda tem que ter a sorte de ter o produto no dia em que você pode comprar, porque você corre o risco de esperar horas na fila e não ter"
Mariana, brasileira na Venezuela

3 meses sem remédio

Mariana diz que, assim como os supermercados, as farmácias estão desabastecidas. "Agora estão trazendo remédios da Colômbia, mas são caríssimos”, afirma.

Ela conta que “faz tempo” que não consegue comprar com regularidade um dos seus remédios controlados. “Há três meses eu não consigo comprá-lo. Um deles alguém me trouxe do Brasil, mas o outro eu não consigo de jeito nenhum. E isso porque eu tenho condições de comprar, agora imagina o pessoal que não tem?”, indaga.

'Estão matando demais'

A rotina de protestos contra o governo de Nicolás Maduro atrapalha o comércio, mas conta com o seu apoio, porque foi a estratégia que “deu certo para chamar a atenção internacional para o nosso problema”.

Ela tem um filho universitário, que já participou dos protestos contra o governo. “Os meninos da resistência são tidos como heróis da pátria. Os pais ficam orgulhosos, porque estão defendendo o país, mas hoje em dia eu não deixo mais ele ir, porque estão matando demais”, afirma.

“Queria que o meu filho fosse passar uns três meses no Brasil, porque morro de medo. Tem opositores que morreram, tem presos políticos, tem meninos desaparecidos, tem denúncia de tortura, é uma ditadura mesmo”, avalia.

"Eu me sinto presa aqui"
Mariana, brasileira na Venezuela

Porém até viajar ficou difícil. Com o fim dos voos de várias companhias aéreas no país, o preço das passagens ficou inacessível. “A passagem, que varia entre US$ 600 e 800 dólares, é muito cara. É inviável para a gente, que mora aqui. Não tem condições. A última vez que viajei para lá faz 3 ou 4 anos. Eu me sinto presa aqui”, conta.

Compras nos EUA

Assim como Mariana, Patrícia*, que mora há dois anos em Caracas, em um bairro afastado do centro, onde as manifestações quase não passam, diz que o fato de poder pagar um preço mais caro a ajuda a ter acesso a uma variedade maior de produtos. Ela diz não ter muita dificuldade para encontrar alimentos frescos, diferente da realidade que vê pela TV brasileira, mas reconhece que os mais pobres são os que mais sofrem com a situação.

"O que mais falta aqui é a comida do pobre. É arroz, feijão, açúcar, pão, café, que é o alimento do dia a dia de qualquer pessoa"
Patrícia, brasileira na Venezuela

"Você chega aqui no mercado, encontra lula, polvo, camarão, todo tipo de peixe, tudo fresquinho. Nunca cheguei numa feira ou num supermercado pra não ter frutas, não ter verduras, à vontade. Isso nunca faltou nos dois anos em que estou aqui", diz. "O que mais falta aqui é a comida do pobre. É arroz, feijão, açúcar, pão, café, que é o alimento do dia a dia de qualquer pessoa", acrescenta.

"É muito delicada a situação, porque nas ruas você vê pessoas mexendo no lixo para comer, situações que se viam muito menos. Nesses últimos meses foi que se agravou", afirma.

Patrícia também adotou a prática de fazer compras em lojas online dos Estados Unidos e pedir para entregar em sua casa em Caracas. A taxa de entrega pode chegar a US$ 1.000 , segundo conta. Ela combina com outros brasileiros amigos quais os produtos que vão precisar e dividem a compra.

"Tudo isso tem um custo, é um custo mais elevado. O frete é caríssimo, mas você consegue ter tudo", diz. "Os produtos vêm de navio, então demora três, quatro, às vezes cinco semanas para chegar".

Patrícia costuma estocar produtos em um maleiro que tem na garagem do seu prédio. "Aqui você tem que comprar para meses, pra não te faltar aquilo que você precisa, que é o essencial".

Liberdade x custo de vida

A brasileira diz que não costuma sair muito de casa e que seu lazer consiste em frequentar um clube e viajar com a família, o que nos últimos tempos tem diminuido.

"A gente tem medo de tudo, a gente não sai pra nada, porque tem medo de sequestro. À noite as ruas de Caracas são muito escuras, então a gente evita ao máximo, é uma vez ou outra", diz. Patrícia diz que não se sente livre da maneira que vive. "É uma vida muito privada, muito restrita de várias coisas. Você tem tudo e não tem nada".

Nos dois anos em que mora na capital venezuelana, Patrícia já viajou a lazer para o Brasil, Estados Unidos e Europa. "Se tiver uma oportunidade, a gente vai. Mas agora está mais complicado, porque as companhias aéreas estão controlando os voos. Não estão fazendo mais voos pra cá. Com isso, as passagens estão um verdadeiro absurdo", afirma. Segundo ela, uma passagem aos EUA costumava custar por volta de US$ 100 e atualmente sai por mais de US$ 1.000.

Ela também viajou de carro a praias no país, mas diz que recentemente a violência nas estradas tem impedido esse tipo de programa.

Patricia reconhece que seu estilo de vida é fora do padrão e que não costuma ser muito impactada pelas manifestações dos últimos meses. "Afeta a minha casa de forma que meus empregados, que moram do outro lado de Caracas, não conseguem vir trabalhar", conta.

Aqui na Venezuela, com todas as dificuldades, com todos os problemas, ainda há uma qualidade de vida melhor do que no Brasil, por incrível que pareça
Patricia, brasileira na Venezuela

A brasileira diz que a vantagem de morar no país é o baixo custo de vida. "Temos amigos que voltaram para o Brasil e a maioria está desempregada. Aqui na Venezuela, com todas as dificuldades, com todos os problemas, ainda há uma qualidade de vida melhor do que no Brasil, por incrível que pareça".

"Hoje na Veneuela a gasolina sai de graça praticamente. Você vai no salão, você paga R$ 5 numa escova de cabelo, a mão de obra que trabalha na sua casa não chega a um terço do valor do que se paga no Brasil. Tudo o que você precisa, que é primordial para se ter numa casa, é muito melhor você viver ainda aqui do que no Brasil", diz.

*Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados.

(Foto: Bobby Coimbra/ Arquivo pessoal)