CULTURA

Há 115 anos chamada de Chile, 1ª rua do Brasil preserva história

Via ficou marcada como palco do comércio elitista até década de 70.

Em 08/07/2017 Referência CORREIO CAPIXABA - Redação Multimídia

Há exatos 115 anos, a primeira rua a ser fundada no Brasil, na cidade de Salvador, era batizada de "Rua Chile". Porta de entrada para o Centro Histórico da capital baiana, a via de cerca de 400 metros ficou marcada na história como palco do comércio elitista até meados da década de 70 do século passado. Hoje, após o processo de descentralização da área comercial da cidade e a decadência da região, a iniciativa privada e o poder público tentam resgatar o espaço como atrativo turístico e até mesmo reacender o glamour dos tempos áureos.

Um dos símbolos da rua, o Palace Hotel, inspirado no Flatiron Building de Nova York, foi reaberto há três meses após ser totalmente reformulado. Foi um dos cenários do romance "Dona Flor e Seus Dois Maridos", obra do escritor Jorge Amado. Era no luxuoso hotel que Vadinho, o primeiro marido de Dona Flor, costumava passar as noites jogando no cassino que funciou no local até 1946 - o espaço foi fechado após a proibição dos jogos de azar no Brasil.

Era no Palace, empreendimento que ocupa um quarteirão inteiro e que divide a Rua Chile com as ruas do Tesouro e a da Ajuda, que "as senhoras da Graça e da Barra exibiam os últimos modelos e algumas delas, as mais evoluídas, num requinte de desenvoltura, arriscavam fichas na roleta", como escreveu Jorge Amado. A ficção retrata o que foi a realidade.

Antes de ser batizada de Chile, a rua onde fica o Palace já teve outros oito nomes. Virou, recentemente, protagonista do quinto livro escrito pela jornalista Gabriela Rossi. Na obra, intitulada "Rua Chile: honra e glória do comércio baiano", lançada no dia 28 de junho como parte das comemorações pelos 70 anos da Federação do Comércio da Bahia (Fecomércio-BA), a escritora conta a história do local, desde a sua origem em 1549, mesma data de fundação da capital da Bahia, até a tentativa hoje de revitalização do local.

Do início do levantamento de informações até a publicação do livro, foram oito meses. A escritora se baseou em informações que colheu em jornais antigos, teses de mestrado e doutorado.

Diz que o que mais a chamou a sua atenção durante o trabalho foi a prosperidade que a Bahia viveu no auge da Rua Chile. "A Bahia de outrora tinha um charme e um comércio próspero. Os costumes da época, o passeio de bonde, a cultura do estar na rua ao ar livre, diferente de hoje, que vivemos a cultura do shopping center. A rua, debruçada para a Baía de Todos-os-Santos, era símbolo da efervescência política e cultural", destacou.

Dos tempos áureos ao 'esvaziamento'

A professora de história da Universidade Estadual da Bahia (Uneb), Neivalda Freitas de Oliveira, que pesquisou a história da Rua Chile para o seu doutorado, diz que o traçado da rua que depois seria chamada pelo nome de Chile já estava desenhado na planta de fundação da cidade. A planta já estava pronta antes mesmo de os portugueses desembarcarem no Brasil. Segundo Neivalda, os portugueses já tinham plantas de como eles queriam que as cidades fossem e, ao chegarem em novas terras, eles aplicavam essas plantas. "Aportaram no Porto da Barra, mas acreditavam que ali era muito vulnerável ao ataque de inimigos. Escolheram, então, a parte alta da cidade, onde tinham uma visão panorâmica. Ali fundaram a cidade e foi ali onde nasceu a primeira rua, primeiro núcleo urbano", destaca.

O primeiro nome da via foi Rua Direita de Santa Luzia. Essa e as demais nomenclaturas que a rua teve sempre se basearam em acontecimentos políticos ou econômicos da época, como lembra Gabriela Rossi. "O primeiro nome foi dado porque a cidade era murada e tinha duas portas, sendo uma delas a porta de Santa Luzia. Como ficava próximo, a rua ganhou esse nome. Conforme a cidade foi crescendo, ali virou o centro do governo, centro político do Brasil colonial. E o comércio foi se desenvolvendo no local, com a instalação de hotéis, lanchonetes, sorveteria, farmácia e lojas com muitos produtos importados. Com isso, a rua ganhou seu segundo nome: Rua Direita dos Mercadores, pela vocação comercial. Depois, na época do Império, também ganhou o nome de Rua Direita do Palácio, porque ali ficava a sede do governo", destaca a escritora.

O nome de Rua Chile, conforme a historiadora Neivalda Freitas, veio somente em julho de 1902, uma homenagem do governo baiano a membros da esquadra chilena que estavam de passagem pelo Brasil por conta da morte de embaixadores do país após uma epidemia de peste bubônica. "O Rio de Janeiro era conhecido na época como o "cemitério dos estrangeiros", por conta das muitas epidemias. A embaixada chilena foi dizimada, e a esquadra do país, que estava participando da coroação do rei, passa no Brasil para buscar os caixões dos conterrâneos", conta.

A escritora Gabriela Rossi diz que foi em função desse acontecimento trágico que a Câmara sancionou uma lei de reparação perante o Chile.

"Após a morte de quatro embaixadores, o Chile criticou a condição de habitação local e ameaçou cortar relações com Brasil. Como era um país importante, dar o nome à rua de Chile foi uma forma de se redimir. Teve uma grande festa na rua para recepcionar os chilenos", destaca.

A historiadora Neivalda Freitas, por sua vez, afirma que foi também uma forma encontrada pela Bahia para "se aparecer". "A Bahia, na época, não tinha tanta importância política e econômica e a recepção aos chilenos com festa foi também uma forma de se colocar como um lugar de destaque, de aparecer politicamente diante de um país que tinha a melhor esquadra, que foi o primeiro da América Latina a se urbanizar, que fazia os melhores negócios e que era o mais organizado politicamente. Foi mais de uma semana de festa", diz.

Em 1912, na época do governo de José Joaquim Seabra, 10 anos depois de ganhar o nome de Chile, a rua passou por uma reforma. Foi feito alargamento da rua e ela foi estendida até a Praça Castro Alves. Para isso, houve derrubada de prédios e até de uma igreja.

"Sempre foi uma rua de experimentos urbanos. Foi lá que teve a primeira linha de bonde, a primeira escada rolante, os primeiros postes de iluminação a gás, o primeiro hotel, que foi o Hotel Chile. Por isso, sempre atraiu a atividade comercial. Era um lugar do comércio de produtos mais finos, e não de produtos populares. Quem queria algo mais popular tinha que ir para a Baixa dos Sapateiros", destaca Neivalda.

No auge do comércio, a rua ditava moda, como lembra também a escritora Gabriela Rossi.

"Era uma grande vitrine. Marcou os costumes da vida na época. As famílias iam para a rua Chile e eram fotografadas. Era o grande centro do comércio de produtos importados", destaca.

A partir do final dos anos 70, no entanto, a rua foi perdendo força, sobretudo com a expansão urbana e migração do comércio mais para a região norte da cidade. "O comércio começou a ganhar força na região do Iguatemi, após a construção do shopping, e para a Avenida Tancredo Neves, que virou um novo corredor de lojas. Além disso, o governo foi transferido para o CAB [Centro Administrativo da Bahia]. Houve, assim, um esvaziamento e declínio da Rua Chile, já que a vida comercial da cidade caminhou para o outro lado", diz a escritora.

Um dos personagens do livro escrito pela jornalista é o aposentado Fridolino Rego, de 91 anos, que trabalhou por muito tempo na famosa Farmácia Chile, que foi aberta na rua pelo pai dele. O idoso, o terceiro farmacêutico do estado a se registrar, guarda na lembrança como era o glamour da via que era ponto de encontro da alta sociedade. "As tardes eram festivas, por causa da quantidade de pessoas que ficavam desfilando, todas arrumadas, todas faceiras. O que estava na moda do Rio e de São Paulo, as lojas da Rua Chile já tinham para vender", lembra.

Fridolino tem até hoje a carteirinha emitida pelo Conselho de Farmácia para que ele pudesse atuar. O prédio onde ficava a farmácia atualmente está envolto por tapumes. Fica na esquina da Praça Thomé de Souza, onde estão localizadas a câmara municipal e a prefeitura da cidade.

A farmácia que herdou do pai se tornou a maior de Salvador. "Tinha uma média de 2.500 pessoas por dia", destaca o ex-farmacêutico, que também faz questão de guardar em casa recipientes que eram usados para manipular medicamentos. "Era exportado muita coisa do exterior, inclusive as substâncias. Mas tinha muita coisa que já era produzida aqui", afirma.

Hotel icônico

O Hotel Palace foi inaugurado na Rua Chile em 1934. Referência de luxo até a década de 70, recebeu artistas nacionais e internacionais, como Carmen Miranda, Orson Welles, Pablo Neruda, Grande Otelo, presidentes da república, jogadores da seleção brasileira de futebol e até soldados americanos durante a Segunda Guerra mundial. Todo em estilo Art Déco, era referência de diversão e luxo, mas foi fechado há pouco mais de dez anos.

Após ser desativado e ficar abandonado, o hotel foi restaurado pela empresa mineira Fera Investimentos, que comprou o empreendimento agora chamado de Fera Palace Hotel. Foi reaberto em abril desse ano. A proposta com a reforma, iniciada em setembro de 2014, segundo o presidente da empresa, Antonio Mazzafera, foi resgatar o glamour e o charme do local sob um olhar atual e contemporâneo.

Com área total de mais de 6 mil m², o hotel tem capacidade para receber 160 hóspedes em suas 81 suítes distribuídas pelos oito andares. "Compramos o hotel há cinco anos, encerramos todo o processo de reforma e ainda estamos contratando todo mundo. Estamos ainda na etapa inicial de retomada dos negócios do hotel", destaca Mazzafera, sem revelar valores de compra do imóvel e custo da reforma.

"A única coisa que podemos dizer é que reformar um prédio desse é duas vezes mais caro do que comprar o terreno e construir do zero. Como está no Centro Histórico, que é uma região protegida e tombada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), tivemos que fazer todo um projeto para respeitar a fachada durante a restauração, sem modificar a estrutura. Além disso, esse projeto ainda precisou ser aprovado pelo Iphan e pela prefeitura", diz.

Mazzafera conta que se interessou em comprar o hotel após ficar "apaixonado" pela arquitetura do imóvel durante uma visita a Salvador. "Fiquei apaixonado também pela rua, a primeira do Brasil, fundada em 1549 por Tomé de Sousa, primeiro governador-geral do Brasil. É uma área que tem uma história muito rica. E o Palace é símbolo disso, instituição presente nas obras de Jorge Amado. Era aqui também onde funcionavam lojas icônicas, como a Adamastor, de artigos masculinos. Funcionava no térreo e tinha esse nome porque era do Senhor Adamastor, pai do cineasta Glauber Rocha", diz.

Ele diz que a estrutura do Palace estava toda comprometida e enferrujada e que tudo precisou ser restaurado. Mais de 700 pilares foram refeitos e reforçados, assim como as 630 janelas e o piso, da década de 30. "O reboco também estava comprometido e a torre que fica no alto estava inclinada para o lado e quase desabando. Hoje, mantemos os traços do Palace, seu histórico, mas com toda a comodidade do século XXI. Todos os quartos têm wifi e os hóspedes contam com uma piscina de 25 metros de comprimento na cobertura, com vista privilegiada para a Baia de Todos-os-Santos".

Mazzafera diz que decidiu restaurar o hotel porque acha que a área onde fica o estabelecimento tem potencial para atrair frequentadores, apesar de destacar que o estabelecimento tem ocupação média de 45%. Considera o percentual baixo e diz que é preciso haver melhorias na infraestrutura e na segurança do Centro Histórico, para que a Rua Chile e as demais possam ser mais frequentadas.

"É uma área turística com potencial, mas hoje está ainda muito abandonada. Há desorganização, a gente vê sujeira pelas ruas e a própria segurança é difícil. A proposta com a revitalização é que as pessoas possam a voltar a frequentar o local como antes, mas a iniciativa privada sozinha não vai conseguir isso. É preciso também uma iniciativa e maior engajamento da gestão pública. Somente a a iniciativa privada não consegue mudar cenário. A baixa ocupação, que é vista em todo o setor hoteleiro, é fruto do momento ruim de turismo em Salvador, porque falta investimento. E Salvador se move pelo turismo".

Projetos de requalificação

Um projeto do governo do estado, denominado de "Pelas Ruas do Centro Antigo", prevê a realização de obras de requalificação da Rua Chile e de outras 260 vias da região central da cidade, em 11 bairros. O investimento, segundo o executivo estadual, é de R$ 124 milhões, com recursos captados junto ao Governo Federal. As obras, de acordo com o governo, já foram concluídas em 51 ruas e em 57 vias os serviços estão em andamento.

Entre os serviços a serem realizados, estão a recuperação e alargamento de calçadas danificadas, construção de rampas de acessibilidade, piso tátil, travessias para pedestres, além de 13 km de ciclofaixas e faixa de serviços ao longo do passeio, onde deverão ser alocados postes, lixeiras e dispositivos de sinalização para facilitar o acesso de pedestres e pessoas com necessidades especiais.

A Conder informou que operários operam, atualmente, na pavimentação de vias e requalificação de calçadas nas ruas do Comércio, Centro, Dois de Julho, Nazaré, Tororó, Barbalho, Mouraria e Jardim Baiano. As obras na Rua Chile, conforme o órgão, serão iniciadas logo após a análise do resultado do trabalho de arqueologia realizado no local pelo Iphan, responsável pelo licenciamento das obras no sítio histórico.

Não há um prazo para a finalização da análise. Durante as escavações do Iphan, foram encontrados no local peças de metal, pinos em cobre, conchas e corais, além de restos de tijolos, telhas e fragmentos de louças dos séculos 17, 18 e 19.

Entre os serviços que devem ser realizados na Rua Chile, conforme a Conder, está ainda a implantação de uma vala técnica subterrânea para passagem das redes de infraestrutura, como energia elétrica, telefonia, gás e fibra ótica.

Outro projeto, o "Revitalizar", da prefeitura de Salvador, pretende conceder descontos em tributos, como o imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) e sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), a moradores e donos de empresas que realizarem reformas em imóveis no Centro Antigo de Salvador. O objetivo do projeto, segundo a prefeitura, é estimular a habitação e a implantação de empresas na região.

A proposta prevê ainda que imóveis com débitos em tributos, desocupados e sem manutenção, podem ser desapropriados pela prefeitura. A administração municipal estima, inicialmente, que cerca de 500 imóveis na região do Centro Antigo estejam em situação de abandono e falta de manutenção.

Pessoas físicas ou jurídicas que já têm ou pretendem adquirir imóveis na região devem receber descontos no IPTU, ISS e no Imposto sobre a Transmissão Inter Vivos de Bens Imóveis (ITIV), caso realizem obras de restauração e reforma nos imóveis.

A lei estabelece que o desconto no IPTU pode ser de 50% depois que as obras de recuperação do imóvel forem concluídas. Já a isenção do ITIV deve ocorrer para quem concluir reformas no prazo de três anos – em caso de restauração - e 18 meses – para reformas. Também será concedida a isenção do ISS sobre os serviços de projetos, engenharia, instalações e construção civil das obras de edificação, restauração, recuperação, reforma e conservação.

(Foto: Alan Tiago Alves/G1)