POLÍTICA INTERNACIONAL

Vitória de Joe Biden é a derrota do retrocesso civilizatório de Trump

O presidente Donald Trump abalou os pilares das instituições americanas.

Em 12/11/2020 Referência CCNEWS, Redação Multimídia

(Crédito: Punch / Fotoarena)

Poucas vezes as eleições americanas foram tão importantes para determinar o futuro do planeta. A virtual vitória do democrata Joe Biden representa uma derrota do retrocesso civilizatório imposto por Donald Trump, apesar da guerra judicial lançada pelo republicano contra os resultados.

As eleições de 2020 representam um divisor de águas para o mundo. A vitória praticamente garantida de Joe Biden tem o potencial de recolocar o país em seu papel de líder da democracia mundial, revertendo um período de tensão e obscurantismo. O processo eleitoral tumultuado terminou em uma vantagem apertada do democrata e uma guerra judicial lançada pelo republicano para interromper a contagem dos votos enviados pelo correio. No pleito que bateu vários recordes, essas cédulas favoreceram largamente Biden, que também venceu no voto popular e recebeu o maior número de votos já registrados por um candidato na história do país. Trump ampliou o clima conflagrado ao declarar vitória prematuramente e, sem bases, negou-se a dizer se reconheceria a derrota. Acusou o processo de fraudulento e, ao final, levou a disputa para os tribunais. Seus apoiadores cercaram os locais de apuração para pressionar. Sua ação não conseguiu implodir o processo eleitoral, mas ele conseguiu uma vitória importante: o caos triunfou.

Em um pleito histórico, Joe Biden venceu no voto popular e recebeu o maior número de votos já registrados por um candidato em mais de 200 anos

Foto: Chris McGrath

Margem apertada

As pesquisas indicavam grande vantagem para Joe Biden, de até 10 pontos percentuais. Mas o republicano surpreendeu, como aconteceu há quatro anos. Apesar do resultado favorável ao ex-vice-presidente, a “onda azul” esperada pelos democratas não aconteceu. Como aconteceu nas últimas eleições, os institutos de pesquisa erraram, apesar de terem divulgado que havia revisto seus métodos. No Meio-Oeste, o democrata conseguiu recuperar dois estados em que Hillary Clinton perdeu em 2016, Wisconsin e Michigan, que voltaram ao controle democrata. As projeções chegaram a apontar um possível triunfo de Biden no Texas, fortaleza histórica republicana, o que simplesmente não aconteceu. Trump ainda venceu em estados-pêndulo como a Flórida por uma margem maior do que em 2016, quando analistas previam um voto latino massivo para Biden — outra previsão furada. A relação histórica de Biden com os negros ajudou a mobilizar nacionalmente uma comunidade que se uniu no movimento Black Lives Matter e se sentiu ultrajada pelo apoio de Trump aos supremacistas brancos.

INEDITO Comparecimento beirou os 70%, o que nunca tinha acontecido (Crédito:Bryan Woolston )

VIRADA Desacreditado no início, o ex-vice-presidente moderado unificou os democratas (Crédito:Chris McGrath)

O resultado novamente expôs um sistema eleitoral imperfeito baseado na eleição indireta de delegados em Colégio Eleitoral, que na prática dá pesos diferentes aos votos dos cidadãos, dependendo da população do estado. É um modelo criado ainda no século XVIII para evitar a sub-representação de estados. Mas, com a mudança demográfica, a integração do voto dos imigrantes latinos, além da expansão urbana, passou a revelar cada vez mais distorções. A manipulação de distritos eleitorais para diminuir o peso de grupos étnicos e políticos e favorecer candidatos, conhecido pelo neologismo gerrymandering, ainda vigora, apesar da lei que garantiu o voto dos negros nos anos 1960. O sistema descentralizado impôs novamente reveses com uma barafunda de regras que propiciam manobras e contestações, como aconteceu este ano com Trump. A judicialização das eleições pode adiar o resultado oficial em vários dias, podendo inclusive levar a uma disputa na Suprema Corte. Era o que Trump queria. Ele contava com os três juízes que indicou ao tribunal, e na confortável maioria conservadora de 6 votos a 3. Mas também aí sua janela de oportunidades se estreitou. A corte negou antes do pleito uma ação dos republicanos que pode ser crucial para selar sua derrota: garantiu a contagem dos votos em trânsito na Pensilvânia, que chegariam pelo correio após o dia da votação. O último litígio em torno da Presidência aconteceu em 2000, quando George W. Bush e Al Gore brigaram semanas em torno do resultado na Flórida, e o republicano venceu a parada nos tribunais.

Trump cercou Joe Biden com uma batalha judicial, mas decisão da Suprema Corte favoreceu os votos pelo correio e limitou sua manobra

Foto: Divulgação

Trump sai do poder na contramão do seu discurso triunfalista. Nos últimos cem anos, ele é apenas o quinto presidente a não conseguir se reeleger. Sua ação divisionista, até na reeleição, era esperada. Ao pressentir o avanço democrata, Trump passou a tentar deslegitimar as eleições. Foi o epílogo de uma gestão destrutiva para os valores democráticos. Surfou na polarização, espalhou fake news, atacou a imprensa, ressuscitou o protecionismo comercial, insuflou a xenofobia e promoveu o racismo. Negacionista do aquecimento global, tirou o país do Acordo de Paris — o que Biden promete reverter. Instilou a desconfiança à ciência em meio à maior pandemia em um século. Atacou a globalização e investiu contra as organizações multilaterais como ONU, Organização Mundial da Saúde e Organização Mundial do Comércio. Com isso, rompeu com os aliados históricos dos EUA em todo o mundo e promoveu autocratas em países como Hungria, Polônia e especialmente Brasil. Os danos que causou terão um efeito duradouro, já que a desconfiança que promoveu às instituições unificou a metade do país. Mesmo diante de uma mudança de rumo na política americana, com uma vitória de Biden, a polarização persistirá. O democrata terá um longo caminho para diminuir a fenda que Trump abriu na sociedade americana. Mas o mundo respira aliviado.

Foto: Divulgação

Mercados animados

A mera expectativa da vitória de Biden animou os mercados, já que ele deve favorecer um pacote econômico trilionário que visa reanimar a economia americana — e isso estimula investidores em todo o mundo. Também trouxe alívio para os líderes de vários continentes, pois Biden significa maior previsibilidade, cooperação internacional e retomada de consensos como a preservação do meio ambiente. Mas o resultado apertado impediu que os democratas dominassem o Congresso. Eles diminuíram sua vantagem na Câmara e não conseguiram a maioria no Senado, como esperavam. Isso indica que Biden terá dificuldades com sua agenda e precisará negociar com os republicanos.

EQUILÍBRIO Democratas diminuíram vantagem na Câmara e não conseguiram maioria no Senado (Crédito:Olivier Douliery / AFP)

Com os EUA voltando a exercer seu papel de liderança, é possível reavaliar a conturbada era Trump e vislumbrar o futuro. Para uma das vozes mais influentes da diplomacia brasileira, Rubens Ricupero, ex-embaixador e diretor da Faap, Trump foi subestimado.

“As causas que o levaram ao poder permanecem. Como, por exemplo, os problemas que afetam a população branca mais pobre dos EUA que perdeu os empregos industriais. Ele teve a intuição de perceber a alienação desse grupo e se identificar com ele. Fez como Getúlio no Brasil, ou Perón, na Argentina.”

Segundo ele, há uma combinação de fatores para o alto número de votos do presidente. Para Ricupero, o resultado apertado mostra que a população continua profundamente dividida. Há quatro anos, Trump concorreu como o grande azarão. Atacando o establishment, ele prometia mudar a política e reativar a economia do país. Conseguiu alguns resultados econômicos positivos e precisou driblar o derretimento de sua imagem de empresário bem-sucedido, especialmente pelas revelações sobre seu imposto de renda. Sobretudo, mostrou resiliência porque abraçou várias bandeiras econômicas que eram historicamente dos democratas. Foi protecionista, contra a tradição republicana a favor do livre mercado. Ampliou o déficit público, também na contramão do discurso histórico conservador. Defendeu o aumento do salário mínimo e benefícios aos mais pobres, lutas que sempre foram mais defendidas pelos democratas. Mas não resistiu à crise da pandemia. Com um anacrônico discurso antissistema, este ano ele representava o governo e a campanha se tornou um referendo sobre sua gestão. Com a economia do país em queda histórica e a nefasta liderança mundial no número de óbitos (acima de 230 mil) e de infectados (mais de 9,5 milhões), suas chances se esvaíram nos últimos meses. Durante as eleições, o país bateu o recorde de 100 mil casos diários de Covid-19, aniquilando a propaganda de Trump de que a doença já estava no fim. Sentindo que um momento crucial para o país se aproximava, a população reagiu. A participação nas eleições foi a maior em mais de um século, com cerca de 160 milhões de eleitores — 23 milhões a mais que 2016. Antes de as urnas se abrirem, quase 103 milhões de americanos já tinham votado — 75% do total de eleitores de 2016. Mais de 60% pelo correio. Nos dias que antecipavam o pleito, pelo menos sete estados (incluindo Texas, Havaí, Nevada, Washington, Arizona, Montana e Oregon) já tinham tido mais votos do que o total da votação em 2016.

A vitória de Biden reverteu um curso histórico que ameaçava a própria ordem global. Mas o populismo — que se introduz nas democracias para miná-las — não foi aniquilado e ainda ronda como uma ameaça. Trump é o sintoma e não a causa de um momento de revisão do concerto internacional que prevaleceu nos últimos 75 anos. Foi eleito após a onda de instabilidade global irradiada pelo crash de 2008 e no mesmo ano da vitória surpreendente do Brexit no Reino Unido, que pôs fim a décadas de um movimento de integração europeia. A globalização, que abraçou países periféricos e ampliou a riqueza mundial, penalizou a classe média e a indústria do primeiro mundo. Os organismos multilaterias criados no fim da Segunda Guerra não conseguiram dar respostas à desigualdade. Trump encarna a reação a uma ordem que frustrou vários setores. Seu discurso contra as elites reflete um sentimento que precisa ser enfrentado. Mas não é possível diminuir seu papel nefasto. Ao atacar os fundamentos da sociedade americana que garantiram dois séculos de estabilidade democrática e negar o direito dos adversários, ele causou danos reais. Além disso, despertou sentimentos obscuros ao atacar minorias e reabilitar a chaga que emana do passado escravagista.

“O voto racista nunca se confessa. Trump representa uma coisa muito perturbadora. Mostra que a sociedade americana está doente”, diz Ricupero.

As ações do mandatário tiveram uma assombrosa repercussão mundial. Trump abraçou ditadores como o norte-coreano Kim Jong-un ao mesmo tempo em que afastou dos EUA os parceiros europeus que se reconstruíram no último século sob a liderança americana. O sistema de Bretton Woods que emergiu após a Segunda Guerra garantiu o maior período de prosperidade do planeta, e é contra ele que o populismo de Trump se insurge. O triunfo de Biden representa uma volta à realidade, ao otimismo e ao progresso civilizatório, ainda que o mal-estar exija, cada vez mais, cautela. (Por Marcos Strecker - IstoÉ)